Cara Elena, te chamo pelo teu nome
Uma carta, um satélite chamado Lila e a outra que me olha
Conheço a Francesca Perricci por dividirmos um amor. Não fosse por ele, acho que nunca teríamos nos encontrado. Ela, italiana de Monopoli (Puglia), 28 anos. Eu, brasileira transplantada no norte da Itália, 43. Talvez você também a conheça e nem saiba. É ela quem está por trás do perfil do Instagram @lamicageniale_italia que de certa forma me influenciou na criação do Clube Ferrante.
Formada em Letras pela Universidade de Bari, com a tese A autora genial: Elena Ferrante, entre identidade e desmarginação, Francesca faz parte da geração de jovens italianos que precisa encarar o imenso desafio de se estabelecer em um país que ainda não acertou as contas com o passado, o que dificulta caminhar em direção a um futuro pavimentado em novas certezas.
Acompanho com atenção tudo o que Francesca produz. Seu último projeto é o podcast L’Altra che mi guarda , que em quatro episódios densos procura refletir sobre o percurso árduo que a literatura italiana feita por mulheres tem trilhado para sair das margens e ocupar o centro. Essencial no pensamento de Francesca é o espelhamento entre as mulheres que escrevem, a necessidade de ter “uma outra” para quem olhar, se confrontar e poder contar sobre si mesma. Por isso o título do podcast: “A outra que me olha”.
Hoje eu queria falar sobre Francesca, com quem me identifico em muitos aspectos. Ela escreveu uma carta muito bonita endereçada a Elena Ferrante e eu quis traduzi-la. Nela, Francesca olha para um dos personagens mais fascinantes da literatura, Lila Cerullo, a quem define como um “satélite”, para contar sobre si. Gosto de pensar que esta carta chegou mesmo até Elena Ferrante. Tenho para mim que Ferrante conhece Francesca, a lê, se emociona. E assim, Francesca, que é uma jovem brilhante e tímida, representa todos nós, levando à autora as palavras as quais tentamos colocar ordem com a bela forma da escrita.
Cara Elena, te chamo pelo teu nome
Fulguração.
Tenho certeza que se Elena lesse essa abertura, torceria o nariz.
Nunca acreditou em fulgurações, muito menos se a palavra aparece ao lado de um filme, de uma música, de um romance que mudou nossas vidas. Não, me diria. Encontre outra, essa já está muito batida.
É audaz de minha parte chamá-la por nome como se a conhecesse pessoalmente; como se juntas, desde que comecei a lê-la, tivéssemos passado um tempo a falar disso ou daquilo, dos desastres do dia a dia aos quais tentamos colocar ordem - sem conseguir - com a bela forma da escrita.
Ainda assim, eu preciso dessa intimidade, de certa forma a desejo. Me serve para encontrar o fio certo para medir a subversão que seus romances causaram na minha vida. Você tem razão, Elena, eu usei de novo um termo que você considera antipático nesse contexto. Mas veja, se como você mesma defende, a arte e a literatura devem nos ajudar a ter um controle mais consciente sobre aquilo que nos rodeia - inclusos os afetos- eu acredito que não podemos ficar de braços cruzados, sem os safanões necessários para encontrar uma ordem.
O amor que sinto pelas personagens que você criou sabe-se lá de qual matéria-prima de sua infância, ou da sua vida de agora, eu sempre imaginei como uma revolução silenciosa, que no momento certo dissolveu o meu velho modo de pensar e ver, para me impor um outro, aquele que habita a minha idade adulta. Para citar Ortese, que você certamente estima e lê, digo que você me deu um novo par de óculos para ver não só os outros, mas também eu mesma. E a substituição da velha ordem à qual se aderia não se chama talvez subversão? E Kafka mesmo não dizia que os melhores livros, considerando a diferente escala de valores que cada um de nós reconsidera, são como um machado para quebrar o mar de gelo que há dentro de nós? Me conceda então o uso desses termos, certa de que não cairei na idolatria cega, mas na gratidão sem limites que tenho por você, por ter me dado uma amiga - uma outra necessária - a quem posso retornar, especialmente nos dias sem luz.
Lila foi uma fulguração, de certa maneira continua sendo, como um satélite que ocasionalmente me manda sinais luminosos de uma posição não especificada. Você precisa saber que nutro um afeto sincero pelos personagens interrompidos cuja trajetória de vida, por teimosia ou fatalidade, permanece inevitavelmente incompleta. Gosto de ver o efeito que o mecanismo que emperra provoca, e o esforço para juntar os cacos de algo que se quebrou e não pode mais voltar a ser íntegro. Lila nunca escondeu os filamentos provocados pelo seu desalinho, embora seu anseio permanente por inteligência fosse uma tentativa de atribuir a si mesma uma função, e portanto um sentido, e por isso eu a amei em cada momento, em cada escolha, em cada falsa alegria e dor.
Me lembra o ferroviário-artista que mora nas páginas de um romance que amo muitíssimo, outra das minhas inumeráveis fulgurações. Deixe-me explicar. O ferroviário-artista é contado por meio do olhar do primogênito, uma criança ressentida que tornou-se adulto e vê o pai como catalisador de toda mentira e violência. Para o pai, o trabalho como ferroviário é opressor. Ele se sente destinado a coisas grandiosas, claro que o ambiente em que nasceu não pode compreender a sua criatividade e por isso o limita, desencoraja, às vezes parece apenas um bufar da sua cabeça insatisfeita e ninguém lhe dá muita importância. A vida para ele é bela só se pintada. O que acontece, porém, é que, ainda assim, o ferroviário-artista persegue sua vocação, chegando a substituir-se com prepotência à história contada pelo filho, e a misturar realidade e fantasia de acordo com suas necessidades. No final, o andaime inicial cede, e ao lado da figura do pai briguento e irredimível abre-se um espaço para outra sombra, a do artista incompreendido e muito descontente.
O certo é que ele quer durar, quer se expandir para além de Nápoles, apesar de sua mulher, apesar de sua família que lhe quebra as pernas com as necessidades de cada dia, com a pobreza. Todos são insensíveis ao seu talento como pintor. E quando falo de expansão, estamos longe anos luz da tranquila plenitude que Lena sentiu com seus livros deixando as fronteiras italianas e chegando na França ou na Alemanha. Não, não havia nada de tranquilo no pintor. Em vez disso, penso na genialidade masculina como um hóspede desagradável que se impõe à força sobre algo, ao ponto de apagar seus limites e convenções. Ela existe e basta, de alguma forma precisamos tolerar isso como um hábito ruim.
Veja, quanto mais eu entrava em contato com Lila, mais sentia o prazer extenuante que você deve ter sentido quando página após página, palavra após palavra, ela se introduzia relutante na obstinada história de Lenu, conferindo-lhe não apenas vigor, mas desordem. Eu sempre vi sentido em um rabisco e em tudo o que ele poderia se tornar diante dos olhos certos, mas vejo com desconfiança as obras de sucesso, aquelas que fazem as pessoas exclamarem maravilhadas: uau! Diferentemente do ferroviário-artista, quanto mais a genialidade de Lila emergia, mais eu notava seu descontentamento. Descontentamento sim, eu disse bem, mas ao mesmo tempo um profundo altruísmo e senso cívico.
Ela era capaz de ganhar uma fisionomia somente ao se relacionar com os outros e com a cidade, mas conservou muito pouco para si, se pensarmos bem. Com a história dos sapatos ela não queria dar ao irmão o sonho da riqueza? Não tinha então deixado a gestão da loja da Piazza dei Martiri a Alfonso porque lhe reconheceu a capacidade de diálogo, porque ele sabia estar no meio das pessoas que contam? E então ela, como uma vidente, não o redesenhou e o misturou consigo mesma a ponto de desmarginá-lo? Não começou a gostar das coisas de que Nino gostava para incentivá-lo a escrever, sem medo das cuspidas, das humilhações, das surras? Novamente por Lena, quando ela voltou para Nápoles, não continuava a exercer o poder de fantasma exigente, como uma agulha no coração para que batesse mais forte? Não era ela, que quando necessário, lhe ajudava a ver as coisas e as pessoas como elas realmente eram?
Sabe, Elena, nos últimos anos, assim como Lila, comecei a nutrir um ressentimento em relação aos títulos, às carreiras acadêmicas, aos longos corredores da universidade. Tolero menos ainda quem faz do seu trabalho um traço característico do ego. Toda esta agitação para esconder as nossas manias de arrivismo, para vencer e prevalecer sobre os outros, para nos darmos consistência apenas em relação a um determinado status social, tudo isso me parece um modo errado de fazer uso do estudo e, mais ainda, do conhecimento.
Eu também - assim como você - acredito que nossos títulos dizem pouco ou nada sobre as pessoas que somos, confio mesmo em quem estuda e conhece por prazer, por puro interesse pelas coisas do dia a dia. Ali consigo ver a semente daqueles que agem sem conivência, sempre a serviço dos mais fracos como fez Lila, ou a Amiga da tua primavera, que te lembra tanto ela.
Em Lila, que permanece sempre no mesmo lugar, reconheci o verdadeiro ato revolucionário. Sua anarquia me pareceu muito mais fascinante do que todas as outras heroínas rebeldes com que cruzei na vida. Pode parecer paradoxal para você, mas contar a história a partir da perspectiva de quem foge raramente me entusiasma, porque se enquadra, de forma indireta, na argumentação que fiz acima. Quanta plenitude senti ao vê-la correndo pelo estradão com o turbilhão de ideias que a seguia como uma sombra, que vida intensa ela teve porque sempre fez o que queria, e, ao contrário do que pensam, nunca a vi súplice de seu passado e de seu presente.
Estudo com sincera admiração aqueles que, mesmo por um destino zombeteiro (expressão exagerada), permanecem no mesmo lugar, mas estão sempre deslocados, e se despem e encarnam mil papéis diferentes: o de sapateira, de Jacqueline Kennedy, de operária, de cientista da computação, de estudiosa, de bruxa eletrônica. Costurei nela o que Arendt chamou de vita activa e expandi suas ações ao desejo de melhorar ativamente aquele cantinho de mundo em que ela se auto isolava. Que façanha nobre e extraordinária.
Nela eu tracei uma longa corrente de afetos da qual você resgatou a memória. Olho para as existências femininas que vieram antes de mim, essa longa sede de sangue e de carne que me permitiu de estar aqui hoje te escrevendo, e todas elas me fazem lembrá-la por motivos diferentes.
Mulheres seduzidas e abandonadas, amarguradas pelo esgotamento estéril do cotidiano, que não têm outra saída a não ser o fogão ou as brincadeiras com as crianças. Quanta inteligência ingovernável que pedia apenas para existir e ser reconhecida foi engolida pelos seus novos sobrenomes. E essa obsessão totalmente anti melodramática de desaparecer, de não ser redutível a nada. Sempre me fascinou.
Ao contrário do ferroviário-artista, muitas vezes tive a impressão de que Lila considerava seu dom não uma bênção, mas uma desgraça. É como se a partir de certo ponto, aquela mesma genialidade que lhe permitiu manobrar seu mundo como ela queria e ao mesmo tempo redimir sua família e as pessoas do bairro, fosse também a única motivação que a mantinha apegada àquele grande rasgo no céu de papel acima de sua cabeça.
Aceitar que você é inferno a ponto de não sentir mais. Até nisso eu reconheço sua rebelião e a faço minha. No entanto, se eu tivesse que retê-la, escolheria falar sobre os longos passeios com Imma pela cidade de Nápoles. Naquelas horas que passava com a pequena, acredite ou não, nunca vi uma tentativa de recuperar a memória de Tina, a menina perdida. Pelo contrário, são trechos que me enchem de alegria, como se eu também tivesse participado daqueles breves passeios. Naqueles momentos de vagabundagem, Lila estava dando a Imma a chave para se orientar no labirinto da cidade, uma tentativa inteiramente feminina de se apropriar do espaço urbano.
Para fazer isso, ela a desenhou à sua maneira, enchendo-a de fantasmas, faunos e castelos em ruínas. Gosto de pensar que ela respondeu ao chamado da cidade e acabou por incorporá-la não como um corpo estranho, mas como um prolongamento de si mesma. Sou muito afeiçoada a essas páginas. Ou talvez não.
Te diria que só a vejo nitidamente quando ela aperta os olhos e atravessa o pátio com cuidado para tirar o sabão das mãos de Melina. A retenho inteiramente dentro daquela figura pequena e nervosa. Ou dentro da loja da Piazza dei Martiri, quando seu desejo incontrolável de se deformar transfere-se para Lena até nos atravessar, os leitores. Ali, debruçada sob sua foto vestida de noiva, com a tesoura nas mãos, a vejo em seu momento de maior beleza.
Uma vez você afirmou que se um leitor desenha em um livro um pensamento independente da vontade de quem escreveu aquele volume, ele então é um leitor privilegiado. Agora então me dou o direito de te transformar em “você” a quem direcionar o meu privilégio de leitora, espero que não se incomode.
Para escrever sobre Lila eu tinha preparado um esquema com palavras chaves, mas não o segui. Porém, permita-me pescar do meu balaio cheio de palavras uma citação que guardo há anos e que não posso deixar de associar a ela e às mulheres como ela, tenho certeza que você vai gostar da relação - é de Elsa Morante.
“Pessoas como você, que têm dois sangues diferentes correndo nas veias, nunca encontram descanso nem satisfação; enquanto estão lá, gostariam de se encontrar aqui, e assim que voltam para cá, logo têm vontade de fugir. Você irá de um lugar ao outro como se estivesse fugindo de uma prisão ou corresse em busca de alguém… Um sangue misto raramente está contente acompanhado: há sempre alguma coisa que o inquieta, mas na realidade é ele mesmo que faz a própria sombra, como o ladrão e o tesouro, um fazendo sombra para o outro.”
O ferroviário-artista que Francesca cita é um personagem do livro Via Gemito (2001), de Domenico Starnone.
A citação de Elsa Morante é do livro A ilha de Arturo (a tradução aqui publicada é de Roberta Barni, editora Carambaia, 2019)
Muito obrigada, por esse presente! ❤️ me emocionou!
Maravilha de carta. Obrigada por nos traduzir. Lila também é a personagem da minha vida... ela existe em cada uma de nós, a verdadeira amiga genial.