Quando a notícia chega e é preciso renomear a palavra
A espera de 20 anos por um telefonema, a viagem que ninguém quer fazer, e a vida que continua na pele de quem veio depois
Se eu perguntar a um amigo imigrante qual é o seu maior pesadelo posso advinhar a resposta. Preciso dizer que o tipo de imigrante sobre o qual falo está fechado em um círculo de privilégios: tem trabalho, e situação legal e financeira estáveis. Somos nós, que escolhemos migrar do nosso país em busca de outras oportunidades; seguimos família, cônjuge, vencemos com muito esforço bolsas de estudo ou procuramos apenas um sossego - que fatalmente não chegará, pelo menos da maneira que imaginamos.
Mas os sonhos, as aspirações e superações estão sempre na companhia de um pesadelo. Ele ronda nossas noites de sono e, quando estamos acordados, fica à espreita, nas nossas manhãs no transporte público, nos finais de semana viajando por cidades novas. Um dia, que a gente não sabe quando, o telefone irá tocar. Provavelmente veremos um nome familiar aparecer na tela do celular. Em alguns casos, desconfiaremos do que está acontecendo, em outros seremos pegos na mais absurda e estúpida surpresa: - seu pai/sua mãe acabou de falecer.
No meu caso foi algo esperado, imaginado e até treinado. No último mês, fiz uma viagem de dois dias para as montanhas, coloquei meu passaporte na bolsa, caso fosse necessário mudar a rota. Agendei muitos trabalhos, olhando o calendário, tentando fugir dos dias, das datas possíveis, preenchendo os quadrados como quem recusa um compromisso irrevogável. E enfim, no finalzinho de outubro entendi que era o momento, que a tal ligação estava muito, muito próxima, e, prudente que sou, resolvi me antecipar.
Reforço que, na condição de imigrante privilegiada, tive a possibilidade de me programar nos últimos meses para uma despesa não indiferente de uma passagem aérea comprada de última hora, e, ainda assim, precisei postergar meu voo para o dia seguinte. O domingo não é um bom dia para receber uma notícia ruim.
Eu estava no aeroporto de Paris, na conexão que me levaria ao Rio quando o telefone vibrou. Vi o nome da cuidadora, com quem eu tinha falado apenas 30 minutos antes, para informá-la que apesar dos milhares de quilômetros de distância, eu chegaria naquela mesma noite.
- sua mãe acabou de falecer.
- você estava com ela?
- sim, falei com ela que você estava chegando, 15 minutos depois ela se foi.
- tá bom, obrigada.
Se meus 20 anos de imigrante não me prepararam para enfrentar o pesadelo, eles me deram um certo contorno, que, naquele momento me segurou na coluna de um dos portões do Charles de Gaulle, o mesmo imenso aeroporto que foi minha porta de entrada para a Europa, em 2004.
Ali, sozinha, eu vi centenas de pessoas caminharem, dirigindo-se aos próprios destinos. Eu, em lágrimas, chamei três vezes pela minha mãe. Não tive muito tempo para respostas. Enquanto eu a chamava, uma voz em francês ordenava que eu me dirigisse imediatamente ao embarque. Foi tudo muito rápido. Consigo ver no meu celular que a ligação que me afligiu pelos últimos 20 anos durou apenas 48 segundos.
Tive 11 horas de tempo, cercada por desconhecidos, espremida em uma poltrona desconfortável, para começar a pegar pelas mãos o que antes eu chamava de pesadelo e, que depois do telefonema, já era outra coisa que eu não sei ainda como nomear.
Estranhamente, naquele dia, o sistema do avião que permite aos passageiros acompanhar a viagem em tempo real não estava funcionando. Assim, atravessei os céus sem saber ao certo onde eu estava, suspensa, no lugar/não lugar que pertence aos que decidem migrar.
A vida que segue
A quarta temporada da série My Brilliant Friend chega hoje ao final. Não foi uma produção que me entusiasmou particularmente, apesar de alguns momentos emocionantes e bonitos. Entre eles, devo destacar as cenas protagonizadas pela atriz Anna Rita Vitolo, que interpreta Immacolata, mãe de Lenu, uma das melhores personagens da tetralogia.
Durante minhas releituras do romance, eu me emocionava muito quando chegava na parte do adoecimento e morte de Imma. Em parte porque eu estava vivendo o mesmo processo com a minha mãe, em parte pela espécie de acerto de contas - algo pouco explícito na obra de Ferrante - entre mãe e filha naquele ponto do livro. Mas o que realmente me tocava era a presença da pequena Imma, a neta, um bebê de colo, que enquanto a avó apagava, era nutrida pela mãe.
“Nós duas - eu e a pequena, que no sono estava buscando avidamente meu mamilo para sentir-se ainda parte de mim - éramos, naquele espaço de doença, tudo o que de vivo e de são ainda permanecia dela” (História da menina perdida, cap. 68)
Três meses antes da morte da minha mãe, eu pude levar minhas filhas para se despedirem dela. Eu queria muito que esse encontro acontecesse. Apesar da fragilidade física, foi um momento de abraços, olhares e afeto. Fizemos uma fotografia de todas nós juntas: a avó, as filhas e as netas. Olhando essa fotografia eu confirmo a minha percepção diária, nos gestos, palavras e gentilezas o quanto minha mãe continua viva, da forma mais bela e nítida.
Deixo meu abraço e carinho a todos que vivem o pesadelo e a todos que já passaram por ele. Eu espero que tenham conseguido renomeá-lo, assim, quem sabe, tenho também a chance de encontrar a minha palavra.
Lindo, Isa. Um abraço carinhoso para você.
Minha amiga querida! É lindo saber que nas suas palavras, no modo como escreve, também está a sua mãe. ❤️