Suspensa entre duas línguas
As gafes que cometemos quando nos faltam palavras. Afinal, os bilíngues são desertores?
Convivo suspensa entre duas línguas que diariamente me pregam peças. Se os deslizes no nosso idioma podem nos trazer no máximo títulos incômodos como ignorante ou na melhor das hipóteses desatento, quando derrapamos em outra língua, o resultado pode ser desastroso.
Como hoje, conversando com minhas filhas, incorporei um Cebolinha ao contrário e troquei um L por um R. Fui contar que na fazendinha onde uma delas participará de uma colônia de férias fazem atividades maravilhosas com as crianças, dentre elas sparare la cacca delle capre. Me olharam confusas entre risadas e repulsa, para depois me corrigirem: mamãe, você quer dizer spalare, não sparare. Demorei alguns segundos para imaginar a cena de um bando de crianças colocando cocô de cabra em uma máquina, disparando o esterco a metros de distância e se divertindo horrores. A meu ver não seria completamente descabido em se tratando de uma atividade rural. Mas também pouco pedagógica, já que deixamos nossos filhos nos tais campos de verão para que passem seu tempo brincando, mas também aprendendo utilidades e gentilezas.
Trocando um simples L por um simples R, eu inverti completamente o intuito da tarefa das crianças. Elas não estão lá obviamente para sparare, mas para spalare a caca, ou seja, simplesmente limpar o cocô das cabras com uma pá. Muito útil e educativo.

Quando minha mãe foi diagnosticada com demência fronto-temporal, eu comecei a me informar sobre a doença. Descobri que um dos mais importantes especialistas em diagnóstico precoce e formas genéticas da demência estava a poucos quilômetros de mim. Ele atendia no Policlínico de Milão. Me dependurei por dias no telefone e consegui com muito custo uma consulta. Estava convencida de que ele poderia prever o meu futuro e oferecer soluções para que eu pudesse me preparar a tempo.
Era um dia de final de inverno ensolarado e bonito. As árvores do pátio do Policlínico recomeçavam a servir de abrigo para os passarinhos. Ainda assim, eu estava muito tensa. Atravessei aquele complexo de caixotes retangulares seguindo em direção a um pavilhão moderno indicado por uma secretária do centro de Alzheimer. Passei pela triagem com rapidez (a eficiência milanesa) e me sentei em um corredor onde eu era a única mulher jovem. Pensei em todos os tu tu tu que o telefone fazia quando eu ligava (o registro do meu celular apontava 99 chamadas), e na vaga na agenda do médico que eu teria arrancado de algum idoso ou familiar em busca de conforto. Me senti egoísta, mas determinada.
O médico era um rapaz minuto, tímido e com cara de bom moço, devia ter a minha idade. Me recebeu com simpatia e me contou que a babá dos filhos era brasileira e que ele conhecia palavras como guaraná e carioca, curiosamente palavras de origem indígena, obviamente ele não sabia disso.
A nossa foi uma conversa muito cordial. Ele me perguntou sobre minha mãe, o que notávamos de diferente e quando tudo começou. Eu expliquei que as palavras simplesmente sumiam da boca dela, às vezes só um pedacinho, uma sílaba ou outra, e que com um esforço maior, a gente entendia perfeitamente o que ela queria dizer. Em outros momentos ela simplesmente abria e boca e não saía, e a agonia de uma palavra faltante contaminava quem estivesse por perto. Contei também que ela comia muito, que tudo o que via pela frente ela colocava na boca, como uma tentativa de preencher o vazio das palavras.
Da boca do doutor minuto saíam sorrisos divertidos e gentis, e depois de perguntar sobre meu histórico familiar, passamos a um exame simples, em que ele avaliava meus reflexos e fazia algumas perguntas. Um dos testes consistia em completar frases. Ele começava um discurso e eu continuava, inventava histórias e eu desenvolvia um enredo com meio e fim. Estava tudo indo muito bem até que eu escuto a seguinte frase: Meglio un uovo oggi…… penso, penso e respondo: do que um pássaro voando. Ops! Entro em uma pequena crise e digo: doutor, eu já não me lembro de mais nada, já não sei em que mundo eu vivo, não consigo encontrar as palavras, minha cabeça está completamente embaralhada. Não tem como a gente fazer um exame de imagem, onde consiga identificar algo? Tem certeza que não precisa? Ele riu e me disse: - você é bilíngue, só isso. As pessoas que transitam entre duas ou mais línguas são sujeitas a pequenos deslizes, perdas e esquecimentos. É tudo normal. E é completamente natural que você, que não cresceu aqui, não conheça os ditados populares que nós aprendemos na infância com nosso avós, tios e pais. Está liberada dessa parte do teste. Assim, ele assinou a papelada, imprimiu uma folha com os contatos e o site do centro de Alzheimer e demências, disse que eu me alimentasse bem, fizesse atividade física e entrasse em contato se notasse alguma mudança significativa.
Quando saí deixei a porta aberta para que o próximo entrasse. Era um senhor muito idoso, bem vestido, acompanhado por uma mulher, provavelmente a filha. O doutor minuto levantou, foi até a porta segurando um papel na mão e o chamou pelo sobrenome. Eu olhei para trás e finalmente consegui liberar a palavra que queria sair da minha boca: Obrigada. Eu acho que ele não escutou, mas não importa.
Toda essa história veio à minha mente depois de ler um trecho de um livro do escritor Erri De Luca chamado Napòlide. Nele, De Luca, que nasceu em Nápoles, mas deixou a cidade ainda jovem, reflete sobre sua relação com o lugar de origem e a sensação de ser um desertor. “E se não tenho o direito de me definir apólida, posso me considerar napólida, aquele que raspou do corpo sua origem para se entregar ao mundo”. E essa é realmente uma questão profunda, delicada, dolorosa de quem escolhe “desertar”. Como o efeito da minha cabeça na sala do Policlínico de Milão, na frente do doutor minuto.
Há algum tempo me dei conta que a minha lingua nativa, minha madrelingua, não é a língua mãe das minhas filhas. Nunca será. Isso me deixou triste e confusa. É muito provável que elas não conseguirão preencher alguns dos meus vazios, quando me faltarem palavras. Por enquanto, comemoro que elas não me entendam ou pelo menos não me copiem quando furiosa abro a boca para disparar um palavrão.
O cérebro nos prega muitas peças. Com os avanços da tecnologia, os exames de imagem, muita coisa se revelou e outras tantas ainda se desconhece. O cérebro do poliglota , o cérebro do bebê, o cérebro da menopausa, o cérebro da demência (aliás, diferentes cérebros para diferentes tipos de demência), como identificar como são ou doente nosso funcionamento, nossas emoções ou nossos esquecimentos? Sim, hoje podemos procurar um especialista, pedir ajuda, mas a verdade é que o cérebro persiste com muitos mistérios para todos. Acho que só nos cabe estarmos atentos e sempre exercitando o raciocínio dessas minhoquinhas que moram dentro na nossa cachola. E, por mais que os românticos tenham sempre associado o coração as nossas emoções, o cérebro que está completamente ligado a tudo isso.
Que bom ler esse texto e saber que mesmo você estando há tanto tempo na Itália, ainda comete alguns “deslizes” de vocabulário. Estou só há dois anos e os meus deslizes no idioma são diários. Meus filhos já até me corrigem, inclusive durante as consultas médicas kkkk