Uma viagem a Nápoles e muitas titubeações
Durante uma safra de desejos confusos, talvez seja melhor mesmo deixar a vida seguir.
Tenho uma dificuldade imensa de conjugar meus desejos com sua viabilidade e realização. É como se uma figura muito sedutora aparecesse na minha frente, quisesse me puxar como numa dança para uma dimensão aparentemente prazerosa, alegre, um éden, mas logo depois risse da minha cara e mergulhasse sozinha no portal das maravilhas.
Um dia quis trabalhar na Câmara dos Deputados, mas quando olhei bem de perto o livreto com o regimento interno da casa, me vi aos pés de uma colina sem conseguir vislumbrar o topo. Deixei a tarefa para os verdadeiros alpinistas. Ainda bem.
Isso foi há mais de 15 anos. De lá para cá, outros desejos se reapresentaram vestidos com roupas que os deixavam ainda mais atraentes. Ou era eu que que à época via maravilhas no lugar de trapos? Durante a pandemia fiquei sem trabalho e então me candidatei ao ofício de “ferromoça”. Não sei se essa expressão existe, mas imaginei que poderia ser interessante trabalhar em um trem, controlando as passagens dos viajantes ou servindo um cafezinho na primeira classe. Mas minha candidatura nem foi considerada, talvez eles estivessem procurando moços e moças mais jovens.
Uma oportunidade imperdível me pareceu, então, um curso financiado pelo Fundo Social Europeu que prometia formar novos jardineiros talentosíssimos, em três áreas de especialização. Um mercado em plena efervescência, haja vista os enormes jardins das vilas vênetas, as antigas casas de campo da nobreza veneziana. Eu imaginei que se não conseguisse pegar no pesado bolando sistemas de irrigação ou usando motoserras para cortar os ramos robustos de árvores seculares, poderia me dar bem fazendo arranjos florais para lojas e hotéis chiques. Quando me lembrei da minha total inabilidade em reconhecer tipos de plantas, flores, além de todo sofrimento causado pela alergia ao pólen, desisti de apresentar minha candidatura.
A última grande ocasião se apresentou de forma fascinante. Um curso trienal, em uma renomada academia de arte veneziana especializada em restauro. Meus olhos brilharam ainda mais quando li que o curso também era totalmente gratuito, financiado por um programa do governo. Logo me imaginei deitada em um andaime, olhando de muito perto as pinceladas escuras do Tintoretto, e adorei a ideia de tocar com as mãos as esculturas que só de chegar perto acionam um alarme nos museus. Puro gozo que se esvaiu quando me dei conta que a prova de admissão, justamente, previa um bom conhecimento em desenho e aquarela. Não poderia jamais tomar o tempo de um profissional para me sentar na frente dele e apresentar uma casinha cúbica com árvores frondosas e nuvens. Inclusive, à época, um pensamento me envergonhava muito: me lembrei do restauro desastroso da senhorinha espanhola e pensei que eu seria capaz de fazer algo ainda pior.
Minha mãe acreditava muito em mim. Era ela que insistia em aulas de piano, curso de etiqueta para que soubéssemos estar no mundo, aulas de inglês e italiano. Ela achava que eu tinha talento e bom gosto. E rezava. Pedia a todos os seus santos para que eu tivesse respostas positivas de entrevistas de empregos, bolsas de estudo, concursos públicos, processos seletivos. Quando ela estava doente e eu pensava na sua morte, algo me angustiava muito: Quem vai rezar por mim quando ela não estiver mais aqui? Quem vai me ajudar a sustentar meus desejos com uma intervenção celestial?
Nápoles, um desejo compartilhado
Há alguns anos, a ideia de formar um grupo para visitar a Nápoles de Elena Ferrante aparecia na minha lista de desejos. Sumia, desaparecia e voltava com força total sempre que alguém me escrevia perguntando: você faz o tour Ferrante em Nápoles? Essas mensagens chegavam pelo menos uma vez por semana, afligindo meu coração desejoso e temeroso. Eu morria de vontade de pegar o primeiro trem, enfrentar os 600km que me separam de Nápoles e acompanhar a Ferranter da vez na descoberta da cidade-personagem.
Eu precisava montar um pequeno grupo, coeso e entusiasmado. Interessado pela literatura italiana, por Nápoles, Ferrante. Aberto a experiências que fugissem um pouco de um roteiro comum. Procurei, pesquisei agências especializadas, livrarias, falei com guias de turismo locais, mas não consegui sair do lugar. Eu já tinha desistido, quando recebi o contato da Accetur, uma agência de viagens no Brasil, me contando que o sonho deles era organizar um roteiro em Nápoles exatamente como eu também desejava. Faltava enfim envolver uma outra personagem no projeto para que ele ficasse ainda mais bonito e interessante. Foi aí que pensei na escritora Noemi Jaffe e na Escrevedeira, um centro cultural que realiza cursos e encontros literários dos quais já havia participado com muito entusiasmo. Toda a equipe da Escrevedeira acolheu a ideia com empolgação e enfim, lançamos nosso roteiro literário A Nápoles de Elena Ferrante.
O pequeno grupo sai de São Paulo no dia 17 de outubro e no dia seguinte nos encontraremos em Nápoles. Na programação incluímos passeios guiados em português, com guias locais especialistas para conhecermos melhor a história da cidade, suas belezas e agruras. Visitaremos igrejas, claustros, museus, palácios, mas veremos também alguns dos locais por onde passaram as personagens de Elena Ferrante, especialmente na tetralogia napolitana. Conheceremos o Rione Luzzatti, o bairro de Lila e Lenu, com sua biblioteca, o estradão, os jardinzinhos, veremos a ilha de Ischia, o azul do golfo e o imponente Vesúvio.
Ao longo da programação teremos a oportunidade de pensar na construção da personagem Nápoles dentro da obra de Ferrante, com leituras de trechos de livros de diferentes autores e sua interpretação sobre a cidade, como Anna Maria Ortese, Fabrizia Ramondino, Goethe, Matilde Serao, Ferrante, claro, entre outros. Vou compartilhar também, o percurso de pesquisa do meu livro Para além das margens, a Itália de Elena Ferrante, que de certo modo me orientou na ideia da viagem literária.
Será preciosa também nessa experiência a companhia da escritora Noemi Jaffe. Antes do início do roteiro, ela irá ministrar uma oficina de escrita de diário de viagem para o grupo. Quem se sentir à vontade poderá compartilhar suas escritas, impressões e inspirações ao final da viagem, quando ainda estivermos em Nápoles. Acredito que será uma experiência bonita e rica, com momentos de muita emoção, assim como é quando uma Ferranter apaixonada encontra outra. As vagas são limitadas e já tem muita gente legal no grupo. Se você quiser vir conosco, é só preencher o formulário que está neste link.
Um gostinho do que está por vir
Nápoles inspirou escritores de diferentes períodos e origens. Temos muitos testemunhos de autoras que interpretaram a cidade de maneira muito próxima à leitura da própria Elena Ferrante. Uma delas é Fabrizia Ramondino (1936-2008), que nasceu em Nápoles, mas viveu em países como Espanha, França e Alemanha. Sua relação com o lugar de origem se transforma à época do terremoto que destruiu parte da cidade em 1980 - o evento aparece na tetralogia napolitana-, quando ela é obrigada a deixar sua casa. Abaixo, transcrevo um trecho das memórias de Ramondino, que ilustra essa relação complexa, que é também a história de quem vai e quem fica na obra da Ferrante.
“Lembro-me então, dos olhos dos novatos à dor, após o terremoto, na ferrovia de Nápoles, toda vez que eu voltava de Roma. E dos olhos que eram tão diferentes na estação de Roma, olhos risonhos, olhos surpresos, olhos atarefados, olhos preocupados, olhos que não sabiam, que não haviam visto, como pareciam, dizem, os dos libertadores para as vítimas sobreviventes nos lagers. Assim, Nápoles, onde é tão difícil viver e de onde é tentador sair, que é tão difícil de abandonar e que nos obriga sempre a voltar, torna-se, mais do que muitos outros, o lugar emblemático de uma geral condição humana do nosso tempo - encontrar-nos em um planeta inabitável, sabendo que é o único onde podemos, por enquanto, ser de casa.”
Até a próxima.
queria muito! ❤
Um dia conseguirei ir. 🙏❤️