Cinco livros e por onde viajei em 2024
Uma seleção de livros que me acompanharam em 2024 e os lugares para onde eles me levaram
Li muito esse ano, sempre menos do que eu gostaria, mas mais do que eu imaginei com a vida dividida entre trabalho, família, compromissos e um luto importante. Foi um ano bonito, lancei meu livro, abracei muitas pessoas queridas, reforcei amizades, deixei algumas no passado que, em alguns casos, é um lugar bom. Como sempre, os livros fizeram sua parte, ensinando, distraindo, emocionando.
Nos últimos dois anos voei seis vezes para o Brasil para estar mais próxima da minha família pelo adoecimento da minha mãe. Viajei algumas vezes para Nápoles, fui a Ischia, Pisa e Florença enquanto fazia pesquisas para o meu livro.
O modo com as cidades são retratadas nos livros é para mim motivo de grande entusiasmo. Enquanto os personagens transitam pelas páginas, me vejo procurando mapas, fotografias, relações entre os lugares e sua história. Assim, de certo modo, acabo por fazer minhas viagens, retornando a lugares em que já estive e vislumbrando conhecer novas terras.
Escolhi para compartilhar por aqui cinco ótimos livros dentre os que li em 2024. Eles ilustram de forma instigante, bonita ou melancólica as cidades que servem de pano de fundo para suas histórias. Milão, Barcelona, Veneza, Belo Horizonte e Rio de Janeiro aparecem em obras de gêneros, autores e épocas muito diferentes. Espero que possa servir de inspiração para as leituras futuras.
Milão, Itália
O deserto e sua semente, Jorge Barón Biza
(tradução Sérgio Molina, Companhia das Letras)
Em 1964, os pais de Jorge Barón Biza resolvem se separar depois de anos de um casamento marcado por muitas brigas e desacordos. No momento em que estão assinando o divórcio em seu apartamento em Buenos Aires, na frente dos advogados, Raúl Barón Biza joga ácido sulfúrico no rosto da ex-mulher, Rosa Clotilde Sabattini. Momentos depois ele se mata e Rosa, desfigurada, contará com o apoio do filho no longo tratamento para refazer seu rosto e sua vida.
Anos depois, em 1998, Jorge Barón Biza publica o livro O deserto e sua semente, onde conta a história assombrosa pela voz de um narrador chamado Mario, que acompanha sua mãe a um hospital de Milão especializado em reconstituição facial. Enquanto Eligia passa pelos procedimentos, descritos em detalhes pelo narrador que não poupa o leitor, Mario explora a cidade à noite entre bares, bebedeiras, excessos e companhias sombrias.
Quando a luz de Milão já havia adquirido aquela qualidade sem horário nem sombras que a caracteriza no inverno, aquele cinza desvanecido que tão bem combina com dourados, vermelhos e azuis, mas que aniquila o espírito quando ocupa sozinho todo o campo visual, o professor olhou com atenção para o rosto de Eligia e exclamou satisfeito: Progredimos, progredimos!
Barcelona, Espanha
Nada, Carmen Laforet
(edição italiana Cliquot, no Brasil Alfaguara)
Carmen Laforet tinha apenas 23 anos quando lançou Nada, em 1945. A história se passa após a guerra civil espanhola, quando a jovem órfã Andrea chega a Barcelona para frequentar a universidade. Ela é abrigada na casa de parentes na calle Aribau, um lugar que já viveu tempos melhores. O apartamento decadente é o retrato de seus moradores, sujeitos transtornados e desesperançosos, com quem Andrea deve então conviver, junto das dificuldades econômicas, o frio, a fome.
Carmen Laforet ilustra a Barcelona daqueles anos, citando suas ruas, o movimento dos bondes, os perfumes de flores da primavera e seu próprio esforço de sobrevivência no ambiente hostil da casa de calle Aribau. Nada é considerado um dos romances mais importantes da literatura espanhola dos anos 1900.
“Um ar marinho, pesado e fresco, entrou nos meus pulmões com a primeira sensação confusa da cidade: uma massa de casas adormecidas; de estabelecimentos fechados; de candeeiros como sentinelas bêbedas de solidão. Uma respiração enorme, difícil, chegava com o cochichar da madrugada. Muito próximo, nas minhas costas, diante das ruazinhas misteriosas que conduzem ao Borne, sobre o meu coração excitado, estava o mar.” 1
Veneza, Itália
O perfume das flores à noite, Leïla Slimani
(tradução Francesca Angiolillo, Harper Collins)
Um experimento inusitado dá origem a este livro tão delicado e contundente de Leïla Slimani. A autora franco-marroquina é convidada a passar uma noite em um museu de Veneza, em meio a obras e instalações de arte contemporânea. A proposta chega no momento em que Slimani se encontra na delicada fase em que o escritor se angustia na busca de concentração e inspiração para se dedicar à escritura de um romance.
E é na Punta della Dogana, onde Slimani acredita não ter nada a comentar sobre arte contemporânea, muito menos sobre Veneza (já que sobre a cidade já foi dito de tudo), que ela faz reflexões belíssimas sobre literatura, sua infância em Rabat e a escrita, e questiona ainda a sociedade de consumo em meio a uma “Veneza que agoniza”. Enclausurada em uma das cidade mais bonitas do mundo, a escritora consegue enxergar Veneza exatamente como ela é.
“Veneza também está morrendo. Contemplá-la é contemplar uma agonia. Pela janela, vejo as águas que logo vão engoli-la. Tento imaginar os pilotis oscilantes que a sustentam. Imagino seus palácios sepultados na água e na lama, suas recordações gloriosas esquecidas por todos, suas praças pavimentadas reduzidas a nada. Veneza carrega em si os germes de sua destruição e talvez venha dessa fragilidade seu esplendor.”
Belo Horizonte, Brasil
Dos que não morrer, aos mortos, Rafael Sette Câmara
Urutau
De férias na África do Sul, um jovem jornalista recebe a notícia da morte da mãe, atropelada em uma rodovia em circunstâncias incompreensíveis. A partir da viagem de volta à casa para o funeral, Rafael começa a buscar explicações para essa morte tão violenta.
Assim, ele mergulha na história familiar, e com a ajuda de cartas da mãe trocada com uma prima, tenta compreender a trajetória solitária de uma mulher frágil e sua instabilidade emocional. Pelas ruas de Belo Horizonte, retratada quase que como personagem no livro, Rafael, de forma corajosa, mostra também sua própria fragilidade, um homem jovem lidando com luto e dor, descobrindo a mulher por detrás da figura da mãe.
“O sol se punha escarlate. À nossa frente, a Serra do Curral emoldurava os arranha-céus que escalam a montanha. Não alto da Avenida Afonso Pena, prédios modernos. espelhados refletiam o fim do dia, que termina na ponta oposta de Belo Horizonte. A avenida desce reta, quatro quilômetros de asfalto que cortam o centro da cidade norte a sul, artéria lotada de pessoas voltando para suas casas, Observávamos a cidade planejada dos vivos, em frente, com seu ruído constante e cortante, até que o concreto dos prédios é substituído por cruzes, anjos retorcidos e Cristo crucificado no mármore.”
Rio de Janeiro, Brasil
Verão dos infiéis, Dinah Silveira de Queiroz
Instante
Anos 1960, um verão no Rio de Janeiro e a família de Valentina deve lidar com acontecimentos que infligem angústias em cada um de seus membros. Depois do suicídio do marido, a matriarca convive com seus três filhos Aloísio, Carminho e Geraldo e, para encarar seu drama, abusa da benzedrina, medicamento usado na época para tratar a depressão.
Acompanhamos os dramas morais, políticos e religiosos dessa família de classe média de Copacabana pelas ruas do Rio de Janeiro, transitando em uma cidade que vive os primeiros tempos da ditadura militar. As inquietações desabam junto de uma chuva que acompanha os três dias em que a história é narrada. Valentina se enterra nas lembranças do passado, enquanto seus filhos lidam com os dilemas de um período conturbado da nossa história.
“O percurso da Tijuca a Copacabana foi demorado. Mudanças no trânsito, uma torrente de seres prestativos ou curiosos a encaminhar-se para o Maracanã; um ar afanoso de mulheres de rosto enérgico e endurecido em responsabilidades pelo atendimento aos flagelados, sirenes de ambulâncias, tráfego contido entre barreiras assinalando uma perigosa depressão nas ruas semincobertas em alguns lugares por poças d’água; pessoas expectantes atulhando as esquinas como seres absorta, mineralizados, embrutecidos pelas calamidades.”
Obrigada pela presença durante o ano, lendo essa newsletter, comentando os posts do Clube Ferrante no Instagram, trocando ideias. Obrigada também a todos que leram meu livro e me escreveram com palavras gentis contando a experiência. Espero que 2025 seja um ano de muitas ideias, de resistência e consciência.
Um grande abraço,
Isabela
tradução de Sofia Castro Rodrigues e Virgilio Tenreiro Viseu, da edição portuguesa do livro, editora Cavalo de Ferro. No Brasil, Nada, de Carmen Laforet foi publicado pela Alfaguara, mas está esgotado.
Li "Nada" uns anos atrás e me marcou bastante. Anotei as outras dicas ❤️
Estava sentindo falta de suas dicas de leitura, sempre são uma grande inspiração pra mim. Obrigada!